Monday, October 09, 2006

Metamorfose de Narciso

Falando em Narciso, não poderia deixar de referir um dos meus artistas preferidos: Salvador Dalí. Segundo registros históricos, a inspiração de Dalí para esta pintura veio de uma conversa ouvida por acaso entre dois pescadores, que falavam sobre um homem da região que ficava a admirar-se ao espelho por horas a fio. Um desses pescadores descreveu o vaidoso homem como tendo um “bulbo na cabeça”, expressão coloquial catalã para quem era mentalmente doente. Dalí combinou esta imagem com o mito grego de Narciso para compor a obra.
No centro do quadro de Dalí está um grupo de homens e mulheres nus, dançando em volta de uma poça de’água, destacados do principal objecto da obra. Descrito pelo pintor Dalí como um grupo heterossexual e lascivo, esta imagem dá início a uma expectativa narcisística, através do reflexo dessas pessoas na água. Este grupo tem ligações claras com outros retratados nas pinturas da época Renascentista, influência provavelmente sofrida por Dalí devido à viagem que ele fazia à Itália quando pintou esta obra.

À esquerda desse grupo está Narciso, ajoelhado, olhando para o fundo do lago. No entanto, ironicamente, a água é escura demais para refletir sua imagem. O seu rosto, que é exactamente a causa da vaidade, da auto-absorção e auto-reflexão, está oculto. Quem observa o quadro vê apenas o topo da cabeça e seu cabelo. O repouso da cabeça de Narciso sobre o seu joelho obscurece para ele sua própria imagem, e o facto de que não podemos ver a sua face sugere que o mito, e talvez a vaidade, estejam mortos. No entanto, estão manifestados de uma outra forma, através da flor que leva o seu nome.

À direita de Narciso está a forma de uma mão a segurar um ovo, do qual nasce a flor. Esta imagem adopta exactamente a mesma forma e postura do seu corpo. A racha no ovo combina com a sombra do cabelo de Narciso, e também com a fissura na unha do polegar, dando à mão um caráter petrificado, surreal, mais adequado ao estilo de Dalí do que seria uma mão de aparência realista. Podemos aqui fazer um paralelo do simbolismo que a unha tem numa técnica oriental chamada Leitura Corporal, na qual cada parte e sintoma do corpo tem uma correspondência emocional. Segundo essa ideia, a unha corresponde à autoconfiança do indivíduo, podendo ser considerada mais forte ou mais frágil, dependendo da constituição física. Neste caso, e por ser o polegar simbolicamente o dedo da auto-afirmação, a racha pintada por Dalí pode ser lida como a quebra e a morte da vaidade. Além disso, a racha pode ser ainda ligada à maneira com que Dalí frequentemente se referia à sua personalidade: metade uma pessoa ordinária, metade um génio, o que reforça a ideia de que o quadro possa ser um auto-retrato.

O ovo, que tem forte simbologia em muitas culturas, geralmente representa o nascimento do mundo, é o poder criador da luz. É a renovação periódica da natureza, a ressurreição, a casa que protege e aprisiona. Segundo a Alquimia, o ovo é o germe de uma vida espiritual: o sujeito e o lugar de todas as transmutações - neste caso, a própria metamorfose de Narciso. Está usualmente ligado também ao umbigo, ao centro de si mesmo e do mundo e, estando representado como a cabeça de Narciso, é a própria fonte de sua vaidade, que o mata, mas também gera a vida. A imagem deste ovo é repetida várias vezes noutras pinturas de Dalí. Ele dizia que, nesta obra, o ovo que dava origem à flor fora inspirado na tal expressão catalã “ele tem um bulbo na cabeça”.

A flor de Narciso, cuja etimologia é narke, de onde vem narcose, está usualmente ligada a cultos infernais. Simboliza o entorpecimento da morte, mas uma morte que não seja talvez senão o sono. Cresce na primavera, o que a liga ao símbolo das águas, à fecundidade. Encerra, assim, a ambivalência morte-renascimento. É como o Narciso de Dalí, que morre, mas dá origem à vida. A água serve de espelho, mas um espelho aberto sobre as profundezas do eu. Da imagem, pode-se apreender também que a mão que dá à luz à vida, por meio do nascimento da flor pelo ovo, está deliberadamente localizada fora da água, que é geralmente associada à vida. Seria esta uma inversão de papéis entre aquilo que simboliza a vida e o que representa a morte, que é a terra árida sobre a qual a mão assenta. Curiosamente, a flor de Narciso não é em si mesma um exemplo radiante de flor mas, em vez disso, uma imagem desgastada, quase uma sombra da haste erecta que quebra a casca do ovo.

A mesma forma, que repete os contornos de Narciso, ocorre novamente no topo da montanha, coberta de neve. A imagem está a derreter, o que nos remete mais uma vez à ideia da morte de Narciso, principalmente pelo facto de estar directamente sobre a figura do mito, noutra circunstância: a imagem de um belo rapaz, provavelmente o próprio Narciso, que permanece em pé, sobre um pedestal, admirando seu corpo. Abaixo dele há um piso quadriculado, como um tabuleiro de xadrez. Não há outros jogadores no tabuleiro, o que indica que eles podem ter sido colocados numa escala abaixo da de Narciso, demonstrando sua superioridade hierárquica. Ele é peça do jogo, e joga sozinho. O tabuleiro de xadrez, simbolicamente, é uma representação da alternância entre a sombra e a luz, o yin e o yang, divisão presente também no psiquismo humano. É a aceitação e o domínio da alternância branca e negra, entusiasmo e controle, exaltação e contenção de desejos. Essa repetição de imagens, recorrente na obra de Dalí, foi usada por ele nesta pintura para demonstrar a sua famosa técnica de imagem dupla, na qual as figuras são pintadas na tela de maneira a que, vendo a primeira, o observador não consiga compreender na sua totalidade o que está a ser mostrado. Essa imagem dupla é complementada também pelo reflexo de Narciso na água.

À direita do quadro, em primeiro plano, existe um cão que rasga uma carne, quase uma carcaça, talvez representando a morte de algo que algum dia já foi belo. Formigas, que são um tema recorrente nas pinturas de Dalí, escalam a mão petrificada, representando a deterioração, a decomposição e, novamente, a morte. Aglomeram-se na base e seguem seu caminho em direção à flor de Narciso, ameaçando a sua existência.

O fundo do quadro compreende rochas similares às retratadas por Leonardo Da Vinci nas suas pinturas, tais como Mona Lisa e A Virgem das Rochas. Elas também lembram os rochedos da costa catalã, terra natal de Dalí, imagens que invadem praticamente todas as suas obras. É notável também a presença de nuvens pesadas, um céu que anuncia uma tempestade: novamente a ideia da morte é retratada, da mesma forma que escureceu o céu na ocasião da morte de Jesus Cristo.

Há quem discuta se a metamorfose do título está em Narciso que se transforma na imagem da mão com o ovo, ou o contrário. A primeira ideia é mais facilmente assimilada através da simbologia das imagens. Narciso é apresentado como um objecto inanimado, sem vida, como uma forma crisálida. A mão tornou-se, além da forma de Narciso morto, uma mão que agora segura uma nova vida na forma de uma flor. O próprio Dalí disse que esta pintura tratava sobre a morte e petrificação de Narciso.

Dalí acreditava que, ao cair na armadilha de apaixonar-se pela sua própria imagem, Narciso estava a estudar seu reflexo assim como um artista faz quando está a pintar o seu auto-retrato. Esta é uma história de profundo auto-conhecimento. Segundo a Psicanálise, amplamente estudada e utilizada pelos surrealistas nas suas obras, o narcisismo nem sempre é neurótico: tem também um papel positivo na obra estética. Dalí funde a visão tradicional do mito com a interpretação da Psicanálise freudiana.

Com tons terrosos e áridos, que remetem à morte, Dalí retratou a morte da vaidade, mas uma morte que faz brotar o novo, o belo. Vaidoso como poucos homens públicos de que se tem notícia, e odiado pelos seus contemporâneos exactamente por causa disso, Dalí pode ter retratado nesta obra a morte de seu próprio ego. No entanto, essa morte é apenas aparente, porque é da mente desse ego que nasce a vida, que surge a criação. E foi graças a essa egolatria exacerbada que, em vez de se recolher ao próprio talento, como tantos artistas o fazem, Dalí conseguiu mostrar-se ao mundo dessa maneira gratamente irreversível, quase como uma missão de dividir conosco, pobres mortais, um pouco de sua genialidade.

Juliana Nunes

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